domingo, 21 de junho de 2015

Gênero e educação: uma história de desigualdades.


Exemplo de uma escola exclusivamente feminina em Portugal,
 no século passado. Nem sempre a defesa de educação
para todos/as significou a mesma educação.
Quando se fala em gênero e educação, numerosas questões podem ser debatidas. Desigualdades de gênero percorreram toda a história educacional desde os primórdios e em todos os países do mundo, continuando até os dias de hoje, ainda que apresentando padrões variados ou mesmo contraditórios. Neste texto, vamos retomar um pouco do histórico do debate sobre gênero e educação para entender em que pé estamos.

De início, a escola era um espaço exclusivamente masculino, nos quais as meninas não podiam ingressar. Ou quando o faziam, eram em locais separados, frequentemente em instituições distintas. Segundo o sociólogo francês Bernard Charlot (2009), na França, berço da revolução que forneceu as bases do sistema republicano, os liceus femininos só foram criados em 1880 e sob forte resistência – o medo de que, escapando da influência da Igreja, as meninas poderiam ser mais… subversivas.

Não há dúvidas, assim, de que as desigualdades de gênero historicamente pesaram contra as mulheres. Longe de ter perdido sua importância, esse assunto ainda está em voga em dezenas de países, principalmente nas nações islâmicas, nas quais o peso do fundamentalismo religioso impõe obstáculos à escolarização delas e ao seu acesso ao espaço público no geral. Porém, a saída para esse problema não foi simplesmente incluir as garotas na escola. À medida que elas foram se escolarizando, surgiram também denúncias de que a escola as discriminava.

Esse é, de acordo com Charlot (2009), um primeiro paradoxo relativo a gênero e educação: o acesso inédito das garotas à escola ser acompanhado de denúncias de discriminação sexista. Há de se considerar que essas pesquisas sobre sexismo na escola datam de 1970, quando o feminismo se amadurecia como um movimento de massa e ingressava na academia. E com a questão de classe social, o quadro é similar: a noção de que a escola reproduz as desigualdades sociais surge lado a lado com o ingresso da população de baixa renda nas instituições de ensino.

Bernard Charlot, sociólogo francês,
aponta para dois paradoxos na
questão de gênero e educação.
Se não há pobres – ou mulheres – na escola, a desigualdade é evidente. O duro é compreender a coexistência aparentemente paradoxal de havê-los/as nas salas de aulas e, mesmo assim, se manter uma discrepância nas oportunidades educacionais para um e para outro. “A desigualdade permanece”, aponta Charlot (2009, p. 163), “já que os graus de sucesso ou fracasso, e as trajetórias escolares decorrendo deles, variam conforme a classe social e o sexo”.

Em todo caso, continuamos a defender o direito a educação para todas/os. Ao mesmo tempo em que afirmamos um discurso universalista, que prevê escolarização para todos os segmentos da população, desconfiamos desse mesmo discurso, pois sabemos que, na prática, ele não se efetiva. Só que, no caso do gênero, a questão é complexa porque as meninas não apresentaram, em função do sexo, um fracasso escolar em massa. Apesar das denúncias de discriminação, sexismo e machismo, elas continuaram caminhando.

Cabe retomar dois pontos para se compreender como, apesar dos pesares, as moças foram se escolarizando. Nos termos do sociólogo francês, é importante distinguir “posição social objetiva” (ser mulher na sociedade) de “posição social subjetiva” (o que eu, mulher, penso e faço com isso). Por mais que as mulheres estejam em desvantagem em inúmeros indicadores – tal como a remuneração no mercado de trabalho, representação política e índices de violência doméstica – isso, por si só, não define a experiência de cada mulher. Individualmente, elas vivenciam distintas feminilidades e se posicionam na sociedade de modos diversos: aquelas que vestem blusa roxa e saem à luta, aquelas que se expõem mais ou menos, aquelas que entram no “esquema”, aquelas que são patroas e as que são empregadas etc.

Coeducar meninas e meninos, brancos e negros, ricos e pobres,
em um mesmo sistema educacional traz o desafio de
compreender por que os desempenhos
terminam por ser distintos.
Na escola, não é diferente. Não basta lhes dizer que, por serem mulheres, enfrentarão mais dificuldades. Quer pelo enfrentamento, quer pelo desconhecimento, elas podem muito bem seguir com seu sonho, esforçar-se na escola e obter excelentes resultados acadêmicos, superando, inclusive, seus colegas do sexo masculino – é essa, pois, a realidade do sistema educacional brasileiro e de muitos outros países. Além disso, lembremos que aquilo que chamamos de “indivíduos”, na sociedade, são na realidade “sujeitos”, tendo alguma autonomia para tocar sua própria vida, com sua agência, para além dos tais limites estruturais.

Somado a esse ímpeto subjetivo, Charlot (2009) destaca que a escola forma, transmite conhecimentos, fornece referências, contribui na compreensão do mundo. Não basta olhar para os condicionantes que afetam meninos negros, garotas, crianças pobres, alunos deficientes etc, apenas por fora da escola – via dados e estatísticas – sem saber o que está realmente acontecendo no âmbito da interação professor-aluno. É ali que alguma relação de saber, de formação e de conhecimento pode ser construída. Ainda que existam exemplos puramente discriminatórios, a escola em geral não seleciona os estudantes por critérios explicitamente sociais: aprovados os ricos, reprovados os pobres; você é menino então ganha meio ponto a mais; desculpe, não posso arredondar sua nota porque você é pardo…

É no âmbito da relação professor-aluno e a avaliação escolar
 que se atribuem as notas para quantificar e qualificar
 a aquisição de saberes. Algo acontece para que certos
 grupos saiam prejudicados, para além do preconceito.
A escola, por sua vez, seleciona por critérios pedagógicos e culturais, relacionados à apropriação do saber e aquisição de conhecimento. Quem sabe, vai bem. Quem aprendeu, se dá melhor. É evidente que existe uma correlação, sustentada pelas teorias da reprodução social, entre ir bem na escola e sua origem social. Mas não podemos deixar de lado a seguinte questão: por que os grupos discriminados socialmente, dos meios populares, têm dificuldades para se apropriarem dos saberes que a escola exige? Se existe alguma relação entre ser pobre e ir mal na escola, ela é antes uma consequência dessas dificuldades. Algo está acontecendo para que tal segmento da sociedade não apresente desempenho adequado.

É aqui que complicamos a questão. Conforme deixei sugerido anteriormente, não são as meninas que apresentam o pior desempenho escola; são os meninos. Ou seja, temos uma diferença fundamental entre as desigualdades de gênero e as desigualdades de classe: esta é bastante eficiente e coerente (crianças da classe trabalhadora se escolarizam menos), ao passo que aquela não cumpre sua profecia. As mulheres, que sofrem mais opressões na sociedade em função do sexo que os homens, são o grupo mais bem sucedido na escolarização. Esse é um segundo paradoxo no debate educacional de gênero, a ser explorado em um próximo texto.

Ao contrário do que diz a sociedade sexista e machista em que vivemos, as mulheres não estão fracassando na escola. Pelo contrário, são mais bem-sucedidas que os garotos. Talvez o discurso pretensamente universalista e democrático da escola esteja sendo comprado há décadas pelas moças, as quais o levam a sério e conseguem, de fato, reverter no âmbito da Educação as desigualdades que tanto as prejudicam lá fora. Se é sempre válido suspeitar do potencial de igualdade da nossa democracia, tampouco devemos ignorá-lo por completo. Às vezes podemos nos surpreender…


Por Adriano Senkevics



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